No universo da série “Expresso do Amanhã” (Snowpiercer), acompanhamos uma locomotiva incessante que corta os resquícios de um mundo apocalíptico. Dentro de seus vagões, a divisão de classes é evidente: passageiros da elite usufruem de todos os confortos e regalias, enquanto aqueles na cauda sobrevivem em condições deploráveis.
Agora, transporte essa imagem para o Agile Release Train (ART) de sua organização. Será que, por trás da estrutura de um trem interligado, os “vagões” — ou times — também vivem realidades distintas, comprometendo o progresso do todo?
Vamos embarcar nessa metáfora para explorar os desafios de um ART mal gerido, as responsabilidades críticas do Release Train Engineer (RTE) e como criar um trem verdadeiramente integrado, que avance na direção certa.
Vagões conectados, mas isolados
No Expresso do Amanhã, os vagões estão fisicamente conectados, mas as classes dentro deles vivem em universos completamente diferentes. No SAFe®, em um Agile Release Train mal gerido, algo semelhante pode acontecer. Embora todos os times e stakeholders estejam teoricamente alinhados a um único propósito — entregar valor de forma contínua —, barreiras culturais e hierárquicas podem criar feudos isolados.
Por exemplo, a alta gestão pode priorizar metas estratégicas distantes da realidade dos times, que lutam para atender às demandas do dia a dia. Isso leva a uma desconexão entre os times “na linha de frente” e os tomadores de decisão, como se cada grupo ocupasse um vagão distinto do trem.
Considere esta cena: você participa de um PI Planning e ouve discursos motivadores sobre metas ousadas. No entanto, quando volta ao dia a dia, percebe que a alta gestão prioriza demandas estratégicas que pouco refletem a realidade dos times que lutam para atender às demandas do dia a dia. Isso leva a uma desconexão entre os times “na linha de frente” e os tomadores de decisão, como se cada grupo ocupasse um vagão distinto do trem.
Scrum Masters tentam mediar conflitos, Product Owners se esforçam para priorizar o backlog, mas ainda assim parece que cada grupo está em um vagão distinto, sem pontes reais para unir os esforços. E os KPIs, como Lead Time, Cycle Time e Deployment Frequency, mostram o impacto: entregas atrasadas, baixa velocidade de integração e insatisfação generalizada.
O preço do individualismo
Outra lição do Expresso do Amanhã é o impacto negativo de líderes que focam apenas nos seus objetivos e do seu time. Quando grupos que deveriam trabalhar juntos competem ou ignoram a interdependência, a eficiência do ART é comprometida.
No contexto da série, os diferentes grupos e classes frequentemente entram em conflito, cada um buscando sua própria sobrevivência em vez de colaborar para garantir a sobrevivência coletiva. Em um ART disfuncional, isso pode se manifestar como times que maximizam suas próprias entregas locais, ignorando a necessidade de sincronização com outros times ou com o objetivo geral do Program Increment (PI). Inclusive, um time pode estar construindo funcionalidades incríveis, enquanto outro trabalha em algo que conflita diretamente. O resultado? Retrabalho, atraso e frustração.
Sem um Release Train Engineer (RTE) que inspire alinhamento e crie conexões, o ART fica preso em conflitos internos, assim como os vagões do Expresso do Amanhã em lutas incessantes por sobrevivência. Algumas métricas de time como, por exemplo, Flow Time e Flow Velocity podem até apontarem para números interessantes, no entanto, quando avaliamos o Cumulative Flow Diagram (CFD) do ART ou simplesmente a taxa de eficiência do fluxo do Train (Flow Efficiency), os números podem ser preocupantes.
A Importância de uma estrutura integrada
O SAFe foi concebido para integrar. Quando mal implementado, é comum que problemas como falta de transparência, desalinhamento de prioridades e disputa por recursos emerjam. Isso lembra a luta de classes retratada no Expresso do Amanhã, onde a ausência de uma visão compartilhada do futuro alimenta o caos.
Lembre-se daquela cena impactante em que o equilíbrio do trem é ameaçado: qualquer falha em um vagão afeta todo o sistema. Isso é um alerta claro para ARTs mal geridos. O SAFe foi criado para integrar todos os vagões — ou times — em direção a um destino comum.
Mas, quando falta transparência, surgem desalinhamentos, prioridades conflitantes e disputas por recursos. Você já sentiu isso? Participar de uma cerimônia como o PI Planning e perceber que um time claramente não entende os objetivos do trem? Ou notar que as cerimônias falham em trazer clareza?
Uma solução seria fortalecer as cerimônias do SAFe para garantir que todos os papéis e times tenham voz ativa, compreendam os objetivos do trem e estejam engajados em alcançá-los. Um ART bem-sucedido é aquele onde todos entendem que o progresso de um é o progresso de todos.
Desafios Adicionais: “O Engenheiro Invisível”
No Expresso do Amanhã, há sempre o mistério do engenheiro: uma figura invisível, distante, que parece desconectada das dores e necessidades dos passageiros. Infelizmente, um RTE mal preparado pode se tornar esse engenheiro fantasma.
O RTE é responsável por remover impedimentos, alinhar stakeholders e garantir que o trem avance com eficiência. Quando ele falha em atuar como catalisador, o ART perde a direção.
Enquanto isso, o System Team pode estar sobrecarregado, os Scrum Masters perdidos em disputas entre times, e até os times desmotivados por falta de clareza em suas entregas.
O Papel do RTE: O Condutor do Trem
No Expresso do Amanhã, o trem depende de uma liderança forte para se manter em movimento. No contexto de um ART, essa figura é o Release Train Engineer (RTE). Ele é o “condutor” responsável por assegurar que todos os vagões — ou times — operem de forma sincronizada e eficiente.
O RTE tem como responsabilidades principais:
- Facilitar a execução do ART: Coordenar eventos como o PI Planning, System Demos e cerimônias de Inspect and Adapt para garantir alinhamento entre as equipes.
- Remover impedimentos: Identificar e eliminar barreiras que prejudicam o fluxo de trabalho entre os times.
- Promover a melhoria contínua: Utilizar dados de métricas como Lead Time, Throughput, WIP, entre outras, para ajustar processos e otimizar o fluxo.
- Alinhar stakeholders: Garantir que a visão estratégica esteja conectada às atividades operacionais dos times.
- Incentivar a colaboração: Criar um ambiente onde os times colaborem entre si e em conjunto com Product Managers e Arquitetos.
Um RTE eficiente não age como um “engenheiro invisível”, desconectado dos desafios do trem. Ele está presente e atua em conjunto com o Product Management e System Architect, guiando e conectando todos os vagões, assegurando que o ART funcione como uma unidade coesa. Quando isso não acontece, o ART fica suscetível a falhas, desalinhamento e perda de valor para o cliente final.
Como Evitar um ART Desgovernado
Para evitar que o ART se transforme em um “Expresso do Amanhã”, aqui estão algumas ações práticas que o RTE pode implementar:
- Garantir a transparência: Usar ferramentas visuais como Quadro de Planejamento do ART (ART Planning Board) e métricas compartilhadas para que todos compreendam o progresso e os riscos.
- Facilitar a comunicação: Promover canais e cerimônias que incentivem a troca de informações entre os times.
- Promover a mentalidade de fluxo de valor: Ajudar todos a entenderem como suas contribuições impactam diretamente o cliente final.
- Fomentar a melhoria contínua: Liderar cerimônias de Inspect and Adapt de forma construtiva, usando dados e fatos para identificar oportunidades de evolução.
- Atuar como um líder servidor: Priorizar as necessidades dos times e remover obstáculos para que possam entregar valor com eficiência.
SAFe como uma Estrada para a Colaboração
É essencial lembrar: em um trem, todos os vagões precisam trabalhar juntos, independentemente de onde estão os passageiros. Afinal, o impacto de uma falha em qualquer vagão é sentido por todo o trem.
Assim como no Expresso do Amanhã, um ART mal gerido tende ao colapso. O sucesso do SAFe está na colaboração, na liderança servidora e na eliminação de barreiras entre os times. Somente com uma visão coletiva, alinhamento e foco no valor para o cliente final é que o trem é capaz de avançar em direção ao seu destino.
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